Só agora tive coragem, e depois de pensar se o faria ou não, de vir aqui, um espaço público, escrever sobre uma das pessoas mais importantes da minha vida. Essa pessoa é o meu pai Fernando, o meu papá, como sempre o tratei, em público ou em privado, que me deixou no dia 14 de Março de 2012, a escassos dias do Dia do Pai. Deixou-me a mim e à minha mãe, nós que éramos muito unidos, uma tripla que falou entre si durante todos os dias, sem excepção. Uma tripla que, quando junta, brincava e sorria, brincadeiras de crianças, felicidade de criança inocente que só conhece o bom que a vida tem para oferecer. Era incrível como sorríamos entre nós todos os dias. O meu pai tinha um sentido de humor muito activo, que se adaptava a toda e qualquer situação que lhe acontecia (uma das muitas boas características que herdei dele) que se adaptava a qualquer circunstância do dia. A minha mãe também. Eu também. Juntando estes três, a felicidade e a brincadeira estavam garantidas.
Sou obrigado a parar de escrever. Estou a chorar, estou a soluçar. Pensei que ia conseguir fazer isto de uma só vez. Choro por saber que não mais vou ouvir a voz do meu pai, que não mais vou ver um jogo do Sporting com o meu pai ao meu lado, ambos a sofrer com o nosso clube.
Quando uma pessoa falece, quem dele fala costuma sempre recordar o bom, as memórias felizes que aconteceram. Quando uma pessoa falece, o menos bom dessa pessoa é como que apagado e apenas o bom é mencionado. Ora bem, essa comum banalização não tem que acontecer com o meu pai. Não. Nunca. Era de facto um pai excepcional, diferente da maioria. Não o digo porque o quero tornar especial. Digo-o porque o meu pai era de facto, e não é preciso qualquer apagamento, especial. Esteve sempre do meu lado, dando-me conselhos, pedidos ou não. Era pai, amigo, conselheiro, tudo ao mesmo tempo. Não posso escrever que o meu papá era o melhor do mundo. Não conheço todos os outros pais, mas conheço muitos, cada um com o seu feitio. Mas o meu, e que eu morra de uma doença dolorosa se estiver a mentir, era excelente. Era um fenomenal pai, um marido atencioso e fiel, um empresário trabalhador, um filho dedicado, um familiar preocupado, um Sportinguista do mais genuíno que pode existir.
Uma pessoa nunca sabe muito bem o que pensar quando o cenário da morte de um seu familiar, ainda por cima um tão especial e amado como o meu papá, se torna possível de acontecer. Um olha para si mesmo e pensa que, por alguma razão que se lhe escapa, é especial, diferente de todos os outros. Que o mal apenas vai bater à porta dos outros. Tenho 23 anos de idade, estou a mais ou menos um mês de fazer 24 anos. Durante toda a minha vida falei sempre, todo e qualquer dia do ano, com o meu pai. Estivesse fora de Portugal, muito longe ou então perto, todos os dias telefonei ao meu pai e mãe para falar com eles. Mas não consegui falar com ele no último dia da sua vida. Os médicos não deixaram que eu o visse.
O meu pai fumava muito, um filho da puta de hábito que aprendeu na Marinha. Fumava 2 maços por dia. Foi-lhe diagnosticado cancro do pulmão em Novembro passado. Hipocondríaco como era, em que qualquer dor no corpo era sinal de um mal terrível que se escondia, cedo e rápido se deslocou ao hospital. A tosse era muita, anormal até para um fumador. Fez os respectivos exames. O médico disse-lhe toda a verdade. O meu pai assim o exigiu, porque o receio de constantes mentiras ditas por médicos no passado, quando o tio dele faleceu por semelhante mal, atormentavam-no. Fez a quimioterapia respectiva no Hospital Pulido Valente. 5 horas consecutivas de tratamento, com a minha mãe sempre ao seu lado, antecedidas por um dia de exames e seguida de um dia de “purificação”. O médico, antes de a quimioterapia começar, “proibiu-o” de trabalhar. Mas o meu pai, e eu estranharia o contrário, ignorou o conselho do médico e continuou a sua vida como sempre: muito trabalho, responsabilidade, e nem pensar em ficar em casa enquanto os outros, principalmente a minha mãe, trabalhavam. Não o fazia com a mesma energia, porque essa era-lhe em parte roubada pelo tratamento, mas a vontade e a motivação eram mais fortes do que nunca.
Lembro-me perfeitamente do dia em que o pai me contou que tinha um cancro no pulmão. Eu sabia daquela tosse fora do comum até para um fumador regular, já tinha ouvido a maldita em várias ocasiões, sempre dizendo ao meu pai que ir ao médico tinha de ser uma prioridade. “Já marquei a consulta”, disse-me ele. Lá foram os dois à dita consulta, meu pai e minha mãe, ambos sempre juntos quando algo de menos positivo acontece. O meu pai fez os respectivos exames. Como me senti eu nesse dia? Preocupado, mas pouco perturbado porque o meu pai era um cliente assíduo das máquinas que nos dizem se o futuro vai ou não ser simpático para o nosso corpo. No dia em que o pai fez os exames, eu não estava em Portugal, ou teria ido com ele e minha mãe ao hospital. Liguei-lhe a perguntar como foi, se ele estava bem e como estava a “madrezita”. Disse-me que tudo estava bem, que os exames correram bem, ou seja, a típica resposta de quem faz os exames e não sabe os resultados. Tudo normal, portanto.
Estando eu já em Portugal (o nosso Sporting jogava essa semana em Alvalade), mas a trabalhar, o meu pai recebeu um telefonema do médico a pedir a sua presença no hospital. Vale a pena contar-vos porque não fui com ele à dita chamada do médico. Não sabia dela. O meu pai e a minha mãe não me contaram nada. Eu sou daqueles que se preocupa apenas com os pais, que se vai abaixo quando algo de mau lhes acontece, mas que nada sente quando a sua própria vida vai menos bem. Perturbo-me muito pouco com os meus “problemas”, mas reajo mal, muito mal, quando algo atinge o meu pai ou a minha mãe. Vou-me abaixo. Desmotivo-me facilmente. Sendo eu assim, os meus pais não me disseram nada, tentando resguardar-me de uma situação que em condições normais daria em mais alguns exames que nada de muito grave apontariam. Chegado a minha casa, o meu pai e a minha mãe estavam perto do portão de entrada. Estranhei, claro, até porque um simples telefonema seria o suficiente para me avisarem da sua visita. Ao passar a curva que vai dar à rua onde habito, olhei para eles os dois, juntos, perto do carro do meu pai. Vi-os a trocarem confidências. Soube logo que algo não estava bem. A minha cabeça imediatamente raciocinou o que havia a raciocinar: exame, tabaco, pulmão, presença estranha. Algo não está bem. Os maus momentos ficam-nos gravados na memória, todo e qualquer segundo do mesmo. Os sentimentos também. Encostei a cabeça ao volante e pensei o pior. Mas admito que o meu pior não incluía a possibilidade de o meu pai ter um cancro no pulmão.
Cumprimentei-os e, ao mesmo tempo, perguntei se tudo estava bem. Enquanto perguntava, passei rapidamente os olhos pela minha mãe, que tem muita dificuldade em esconder o que lhe vai na alma. O rosto não era simpático, o olhar, triste, confirmou-me que algo não estava bem. O meu pai preferiu dizer “vamos entrar”. Já no interior da casa, os três sentados à mesa, o meu pai disse-me que lhe tinha sido diagnosticado cancro no pulmão. Eu tinha um copo na mão. Esse copo imediatamente caiu ao chão, partindo-se. Comecei a chorar. Parecia uma criança. Porque não queria que o meu pai visse o seu filho de 23 anos de idade a chorar, fui para a sala de estar, a correr. Atirei-me para o sofá, enfiei a cara na primeira almofada que me apareceu à frente. O meu pai entrou na sala, a minha mãe vinha atrás dele. Reconfortou-me à sua maneira, sentando-se ao meu lado e contando-me que tudo iria ficar bem. A minha mãe dizia-me o mesmo.
Passados dois meses após o diagnóstico, o meu pai começou a fazer os respectivos tratamentos. Quando saia do hospital ligava-me para eu poder saber como é que ele se sentia, como tinha sido o tratamento, como estava a minha mãe, o que disseram as enfermeiras, etc. Para perceberem como era o meu pai, conto-vos aqui como foi a primeira vez em que o vi depois do primeiro tratamento. Estava em casa dos meus pais, acabadinho de chegar, quando o carro do meu pai é estacionado na garagem. O meu pai aparece pela porta da mesma.
- Então, como é que correu? – perguntei-lhe eu.
- Estou pronto para outra! – respondeu o meu pai. Atrás dele, a minha mãe ria-se.
Era assim o meu pai. Nunca aceitava a derrota como certa, nem um momento triste como irreversível. E nem pensar em esmorecer! Respondeu-me de formas parecidas em todas as outras ocasiões em que chegou a casa vindo de um tratamento. Sempre a sorrir, sempre bem-disposto.
O meu pai tentou deixar de fumar em várias ocasiões. Nunca o conseguiu, e o melhor que alcançou foram algumas semanas com a dose diária de nicotina reduzida a metade, talvez nem isso. A partir do momento em que soube do seu estado, deixou logo, ali naquele preciso momento, de fumar. Nem ajudas, nem remédios, truques, coisas estranhas, nadinha. Acabou-se o SG Ventil. Drástico. No Dia do Pai, desde que me lembro de lhe escrever um cartão (tenho-os a todos guardados e prontos para serem transformados num gigante quadro que ficará colocado na parede do meu quarto), roguei sempre que ele deixasse de fumar. Sempre. Chegamos a uma determinada idade, quando a responsabilidade é obrigatória, continuei a pedir-lhe que deixasse de fumar, embora não o pressionasse tanto. Era a tal aura de invencibilidade que vos falei há pouco. Fiz mal. Agora que não tenho o meu pai perto de mim e de minha mãe, penso que devia ter pressionado o meu pai muito mais, até ameaçado chatear-me com ele de forma definitiva (embora fosse tudo bluff, como é óbvio). Não tenho dúvida alguma de que o meu pai estaria comigo hoje se o tabaco não fizesse parte da sua vida há 2 ou 3 anos.
Desde muito cedo que o meu pai me incutiu o Sportinguismo que hoje me ajuda a definir enquanto pessoa. O meu pai era sócio do Sporting praticamente desde o dia em que nasceu, proposto pelo meu avô, também ele sócio do Sporting desde idade muito nova. O meu avô é sócio do Sporting há mais de 75 anos. O meu pai educava-me sobre o Sporting quase todos os dias. Fazia-me perguntas sobre a história do Sporting Clube de Portugal. Lembro-me perfeitamente de vários desses momentos, um deles tinha eu uns 10 anos de idade:
- Mais uma pergunta, é? Quem foram os 5 Violinos?
- Era a melhor equipa do Sporting – respondi eu.
- E não só, filho. Foi a melhor equipa que Portugal alguma vez viu jogar. Aqui vai mais uma: qual é o nome daquele jogador que praticava muitos desportos?
- Qualquer coisa Correia? – o apelido eu sabia.
- Jesus Correia. E o nome do jogador que marcava quase todos os golos?
- Peyroteo.
- O melhor avançado que este país viu jogar. Como é dos nossos, não lhe dão o mérito que merece. Preferem o Eusébio. O Eusébio, ouve bem o que te digo, filho, não era nada ao lado do Peyroteo. Mas como jogava no Benfica… Então e o nome daquele homem que está na fotografia vestido de vermelho?
- Travassos.
Apenas uma das centenas de conversas que o meu pai teve comigo sobre o Sporting. Foi doutrinado, e sempre o aceitei com um sorriso enorme na cara, na história do Sporting, no significado do Sportinguismo. Estive presente no infame 3-6, em Alvalade, sentando na bancada central com o meu pai e o meu avô. Chovia bastante nessa noite, os lampiões enchiam a Superior Norte, lembro-me bem, mas o que ficou na memória não foi nem o tempo nem o miserável resultado, mas o que o meu pai me disse depois do jogo, mais ou menos isto:
- Ser do Sporting é isto, filho. É sofrer, sofrer e sofrer até nunca mais.
Muitos anos depois, e chateando-me eu com resultados menos felizes do Sporting, o meu pai respondia-me sempre assim:
- Ainda te esperam muitos anos de sofrimento. Prepara o coração, porque o Sporting nunca nos dará descanso.
E era/é verdade. Qualquer um de nós o sabe. O Sporting é o nosso clube, mas tem aquele doloroso hábito de fazer sofrer os milhões que o apoiam. “Sporting Sempre”, dizia-me também o meu pai após uma derrota do nosso clube. Esses são hábitos que me ficaram incrustados na personalidade. Repito-os ainda hoje. Vou repeti-los até ao dia em que for ter com o meu pai. O meu pai era um Sportinguista total. Via e queria saber de tudo o que dizia respeito ao Sporting. Acompanhava sempre as modalidades do clube. Adorava andebol, recordava-me imensas histórias do Hóquei em Patins do nosso clube, da famigerada equipa que todos os títulos vencia e que todos os clubes derrotava. “Os 5 violinos do Hóquei”. Daí que esta modalidade seja por mim especialmente acarinhada.
Devo ao meu pai e à minha mãe todo o bom que em mim existe. Todo! O meu pai foi para mim melhor pai do que eu fui filho para ele. Não fui de todo um mau filho, mas durante anos e anos só pensei em divertir-me, em sair, em beber, em mandar vir com os professores, em atravessar parte dos anos escolares agarrado aos últimos períodos educativos para passar de ano, com notas miseráveis e pouco recompensadoras. Actos de rebeldia que mereceram do meu pai pouca punição talvez porque também ele, quando era jovem, fazia das suas. Mas levei uma quantas lambadas, claro, e nunca por uma única vez pensei mal do meu pai por isso. Eu mereci-as! E cheguei até a ser punido com um duche de água fria, todo vestido, por ter saído de casa às escondidas. Depois desse duche de água fria, o meu pai teve um ataque de consciência e começou a chorar. Acabámos por nos abraçar. Está guardada na minha cabeça todo esse momento. São momentos como este que definem a relação de um pai com o seu filho. Eu percebi imediatamente o mal que tinha feito, o meu pai entendeu que aquele castigo, embora merecido, era estranho e, talvez, demasiado forte. Nunca mais voltei a fazer o mesmo. Qualquer filho que respeite o seu pai não o consegue ver chorar. Não só não o consegue ver chorar, como não o quer ver chorar.
Para recordar o meu pai e a relação dele com a minha mãe, conto aqui, de forma muito resumida, como o meu pai conheceu a minha mãe. O meu pai entrou para a Marinha Portuguesa em fins de 70, já depois de a Guerra do Ultramar ter terminado. Durante a época de treinos navais da NATO, a fragata onde servia atracou num porto da Escócia, numa das muitas paragens que se faziam por portos de país membros da Aliança Militar conhecida como NATO (OTAN). Lá saiu o meu pai do barco, juntamente com os seus amigos marinheiros, para atacar os bares da localidade mais próxima, o que era comum todos fazerem quando o barco não estava em navegação. Terminada essa curta paragem, o próximo destino era França. Pumba! Avaria no barco, paragem de emergência, para reparos, em Newcastle. Lá foram os marinheiros portugueses para a noite de Newcastle. O meu pai, já dentro de uma discoteca, vê esta jovem inglesa, de longos cabelos pretos e cuja beleza faria qualquer homem dar as voltas e voltas ao mundo só para trocar uma palavra com ela. Aborda a jovem. Conta-lhe que é um oficial brasileiro (ainda hoje não percebo o porquê de ter escolhido o Brasil) que caçava tubarões – a sério! Um mês depois, o meu pai pede, não sem antes visitar os pais da jovem, a tal jovem inglesa linda em casamento. Entretanto, passaram-se 33 felizes anos (fariam 34 anos no dia 28 de Abril). Estamos perante uma história de amor que uma escritora de histórias desse tipo teria muito orgulho em conseguir inventar. Esta, contudo, aconteceu. E só pecará por insuficiência de informação, não por excesso ou truques para a tornar mais especial. Amor à primeira vista, ambos mo disseram quando me contaram como se conheceram. Para quem não acredita, tem aqui a prova de como existe. Pode não acontecer a todos, mas existe. É raro, mas existe. Não é exclusivo de obras de ficção amorosas.
Depois de muitos anos sem entregar-me aos estudos, decidi pensar um bocadinho sobre o que tinha feito até então. Foi fácil chegar à conclusão de que não tinha feito muito. Decidi então abrir a pestana, como se diz, e esforçar-me na escola tanto quanto o meu pai e a mãe o fazem no trabalho. Sacrifício aqui, sacrifício ali, sacrifício acolá, as notas sobem, os recados de mau comportamento quase que desaparecem, as suspensões (5) cessam de acontecer. Lá vou eu para a Universidade Católica, feito que os meus pais adoraram, dado que nenhum deles completou o ensino escolar. Depois de concluir a licenciatura, candidatei-me a três universidades muito prestigiadas. Problema!: eram todas fora de Portugal, e ver-me fora de Portugal era algo que atormentava muito o meu pai e a minha mãe. Quando lhes contei que me tinha inscrito, não quiseram acreditar. O meu pai, conto-vos, é uma mãe-galinha. Sem tirar nem pôr. Sempre me surpreendeu a preocupação maternal (a tal que normalmente cabe à mãe) relativamente a mim. A esse respeito, tive duas mães! Tentei compensar os meus pais pelos erros, alguns habituais e outros muito infelizes, que cometi no passado. Estava a conseguir.
Sabem o que me fode mais do que nunca, aquilo que cá dentro parece ter deixado um tumor que perdurará até eu morrer? Saber que o meu pai não vai conhecer os meus filhos. Saber que o meu pai não vai poder ser avô (que fabuloso avô daria!). Saber que o meu pai não vai mais atender um telefonema meu. Saber que o meu pai não vai estar ao meu lado quando o Sporting estiver a jogar. Saber que o meu pai não vai mais poder aconselhar-me em momentos cruciais da vida de um jovem adulto. O meu pai sempre me confidenciara o desejo dele de me ver casar com uma mulher tão espectacular quanto a minha mãe. Sempre admitiu que teve muita sorte (a minha mãe diz exactamente o mesmo) em encontrar um amor como aquele que descobriu em minha mãe. A relação entre os dois espelhava isso mesmo: uma relação com muitos anos de vida, mas que era vivida como aquela que vivem dois jovens em tenro e louco amor. O meu pai é o primeiro elemento da minha família próxima (pais e avós) a falecer. O meu avô inglês, a caminho dos 100 anos de idade, combateu na II Guerra Mundial. Continua, felizmente, por cá e dispõe-se a, sempre que convidado ou então por iniciativa própria, caminhar até onde for necessário, visitar os locais que merecem ser visitados, fazer as viagens de avião necessárias para ver a filha e o neto. Os meus restantes parentes próximos (maternos e paternos) continuam bem, com os problemas habituais da terceira idade. Mas estão bem.
Tenho tentado combater a solidão que parece definir, agora, a minha personalidade com alguns remédios, por assim dizer. Conto-vos quais são porque nada nos prepara para o que pensamos não poder acontecer – “só acontece aos outros”. Utilizo, por exemplo, os pijamas do meu pai. Ofereci os meus à Igreja do Algueirão, e apenas utilizo os do meu pai. A minha mãe faz o mesmo. Utilizo também algumas das suas gravatas, principalmente as que têm as iniciais do seu nome (F.W). No Dia do Pai do ano passado comprei ao meu pai um relógio, ele que era um fã de relógios. Sou eu que agora utilizo esse relógio – é a primeira vez que o faço, até porque não tenho um único relógio só meu. O escritório do meu pai em nossa casa, cujas paredes estão repletas de quadros do Sporting e de estantes de livros escolares muito antigos, permanece tal e qual ele o deixou. Alguns dias antes de ser internado, sentiu, talvez por lá no fundo dele mesmo perceber que o seu tempo connosco estava a terminar, a necessidade de organizar alguns dos seus livros antigos, dos cd’s de vinil que ele adquiria em lojas de antiguidades (ele sonhava em, depois de se reformar, abrir uma loja de antiguidades). Sinto-me mais próximo do meu pai quando me encontro perto do que era dele. Por vezes, imagino-o ao meu lado, materializando, virtualmente, a sua figura corporal à minha frente, sentado no sofá, ou então a cozinhar, um dos seus passatempos favoritos. E quando estou no carro faço o mesmo. Olho para o lado: e lá está ele no pendura, lugar no carro que detestava, com as palmas das mão sobre as pernas.
Passado mais de um mês após o seu falecimento, a minha vida deu uma volta enorme. Regressei a Portugal de forma definitiva, colocando em pausa o mestrado e deixando a instituição onde trabalhava. Regressei à casa dos meus pais. Vivo agora com a minha mãe, no mesmo quarto que foi meu durante muitos e felizes anos. Sinceramente, e como a casa tem espaço mais do que suficiente para receber mais uma pessoa além de mim e minha mãe, não me vejo a sair desta casa durante os próximos anos. É um retrocesso? Não, não é, porque imaginar a minha mãe, que há mais de 30 anos decidiu deixar a sua vida em Inglaterra para ficar com o meu pai, sozinha em casa é demasiado doloroso para mim, e pensar em deixá-la sozinha, e também porque ela mais do que merece a minha companhia (e também porque quero esta perto dela, o mais possível) soa-me como uma traição abominável – eu adoro-a, ela é uma mãe espectacular, sempre tratou muito bem de mim, e só vejo com bons olhos o futuro se ao meu lado ela estiver. Vou visitar o meu pai todos os dias. Está sepultado num cemitério perto de nossa casa. Deixo-lhe lá o jornal que ele todos os dias lia, o Jornal A Bola (sim, eu bem tentei que o meu pai abandonasse esse pasquim, mas sem sucesso). Falo com ele, leio-lhe um capitulo de um livro que eu acho que ele gostaria de poder ler. Já conheço todos os que trabalham no cemitério. Boa gente, todos muito simpáticos, solícitos perante o sofrimento de quem visita o local para poder encontrar os seus amigos ou entes queridos. Entre o portão de entrada e a zona onde está o meu pai, e este cemitério é de uma dimensão considerável, deparei-me com duas campas embelezadas com o símbolo do nosso Sporting. Dei uma palavrinha de apreço a ambos. Ao Sr. Ambrósio e a um outro homem cujo nome se tornou impercetível por causa do avanço do tempo sobre a lápide. O símbolo do clube, o antigo, pouco se percebe, salvando-se o verde e o leão, já bastante raspado.
Nunca mais consegui ver um jogo do Sporting Clube de Portugal, seja em que modalidade for, algo que nunca fiz desde 1993/1994, época em que comecei a acompanhar o Sporting assiduamente (embora nos primeiros anos eu tenha acompanhado o SCP pela rádio, até porque os jogos pela televisão alternavam entre Sporting e Benfica e, embora mais raro, Porto). Não consigo, pelo menos por enquanto. Sei, superficialmente, o que se passa, até porque compro todos os dias o jornal A Bola para o meu pai, mas não consigo acompanhar o SCP. O meu Sportinguismo não morreu, claro que não, mas é ainda muito cedo para regressar a algo que somente conheci com o meu pai sempre ao meu lado – não conheço o SCP sem o pai Fernando a sofrer tanto quanto eu e comigo. Eu perdi um pai fenomenal. A minha mãe perdeu um marido espectacular. Os meus avós perderam um filho muito querido. E o Sporting perdeu um Sportinguista do mais genuíno que pode existir. Quando, estando eu em casa dos meus pais, estou na sala de estar, sentado no sofá que eu normalmente ocupava, tinha o meu pai exactamente ao meu lado esquerdo. Agora, se para lá olhar, o sofá está desocupado. Custa a crer. Prefiro então não enfrentar essa tristeza. Por enquanto. Acho que um dia, muito lá para a frente, vou sentar-me novamente no meu sofá e ver o meu clube a jogar. Acho que sim. Acho que o vou conseguir fazê-lo.
Sou hoje um jovem amargurado. Vejo pessoas na rua, tipos que parecem não ter para onde ir nem o que fazer, e pergunto, várias vezes por dia: este anda aqui a fazer o quê? O meu pai faleceu porquê? Confusões de merda, na mente e no corpo, que parecem não deixar-me em paz. Pode ser que o tempo trate de as afastar de vez de mim. Combato-as com as milhares de boas memórias que tenho do meu pai – são suficientes, mas a amargura é muita. Mas as perguntas, essas, ficarão para sempre. No último dia da minha vida, naquele último momento de vida, daqui a muitos, muitos anos, direi a quem próximo de mim estiver: “Pai, estou a caminho, prepara aí uns abraços e uns beijos!” Sentindo-me como me sinto agora, confesso que não aguentaria perder ambos os meus pais ao mesmo tempo. Pensava que iria ter o meu pai até daqui a muitos anos, mas tenho 23 anos e o meu pai já se foi embora. Tenho cá a minha mãezinha, contudo. A minha mãe é também um espectáculo como mãe, como pessoa. Que sorte do outro mundo tive eu em ter pais como os meus! Queria poder dizer ao meu pai, depois de conquistar algo para mim, o seguinte: “Pai, isto é em tua honra!” Não o vou poder dizer.
Perdi o meu pai de um momento para o outro, quase do nada, inesperadamente, mesmo sabendo do terrível problema de que padecia. Ao contrário de grande parte dos casos dos doentes de cancro no pulmão, o meu pai teve um principio de AVC seguido de uma paragem cardio-respiratória, não conseguindo prolongar o tratamento durante muito tempo. Passou despercebido, o AVC, a mim e à minha mãe. Algumas semanas antes, o meu pai sentiu-se muito mal, subitamente perdendo o apetite e sofrendo muitas náuseas, tonturas, até ao ponto em que não podia cheirar nada, movimentar-se um metro que fosse sem vomitar ou cair. A doutora informou-nos de que o terceiro dia após uma sessão de quimioterapia costuma ser o pior, agregando todos os sintomas numa confusão que destrói a motivação de qualquer doente. Nesse dia, chamámos o 112 e a ambulância levou o meu pai às urgências do Hospital Amadora-Sintra. O médico que lá o tratou disse que não era nada de anormal. Ainda bem. Algum tempo depois, aconteceu exactamente o mesmo, mas desta vez o meu pai nem conseguia sair da cama, sentia-se incapaz de movimentar o lado esquerdo do corpo e a sua fala era imperceptível: murmurava. Como eu não estava em casa, teve de ser a minha mãe a chamar o 112. A ambulância veio novamente a nossa casa. Eu não estava lá. Foi esse o último dia em que vi o meu pai, numa terça-feira, dia 13 de Março. A minha mãe ficou com o meu pai o dia 13 todo, ao lado da cama onde estava deitado. O médico que o recebeu nesse dia 13 informou a minha mãe que, ao contrário da primeira vez, o caso era sério. Era perigoso. O meu pai sofrera um principio de AVC. Fui ter com a minha mãe ao hospital sem saber da gravidade da situação. Lá chegado, a minha mãe contou-me tudo. Mesmo assim, e porque sou optimista por natureza, acreditei que o meu pai iria ultrapassar aquele mal. Queria lá ficar, ao lado dele, a minha mãe também, mas não nos foi dada permissão para tal. Viemos para casa. No dia a seguir, recebemos um telefonema do médico. Pedia-nos que fossemos ao hospital para “discutir a situação do meu pai”. Confesso: pensei imediatamente que o meu pai havia falecido. Fomos lá e, porque o que se passou é demasiado doloroso, ficámos a saber que o meu pai havia falecido às 03h55 do dia 14 de Março. Falei com ele todos os dias da minha. Todos. Todinhos. Nem um passou sem que eu falasse com ele. Contudo, não consegui falar com ele uma única vez depois de ele ter sido internado. O meu pai temia ficar incapacitado para o resto da vida. Sempre o confidenciou a mim e à minha mãe. Sempre me disse que seria horrível ele tornar-se um fardo para os outros. Agora que penso na forma como ele pereceu, penso, não sei se genuinamente ou se é um mero mecanismo que eu próprio congeminei para me distrair da dor que sinto, que o que lhe aconteceu assim aconteceu para evitar precisamente os 6 restantes meses de tratamento que, no final dos mesmos, seriam inconsequentes no seu objectivo. Resta-me esse consolo. Ele não sofreu. Sei-o de certeza.
Mais uma coisa: o tempo não cura tudo. Alivia. Mas não cura. Garanto-vos. Peço-vos o seguinte: depois de lerem o que escrevi, não pensem duas vezes em procurarem a pessoa que mais amam e dizerem-lhe isso mesmo, olhando-a nos olhos, abraçando-a com toda a ternura que o vosso corpo tem para oferecer. Mas utilizem a palavra “Amo-te”. Disse-a muitas vezes ao meu pai, quando era criança e, especialmente, quando soube que ele tinha cancro no pulmão. O meu pai partiu sabendo que eu o amava muito, assim como a minha mãe. Fico muito feliz em o saber. Confere-me uma tranquilidade que agora me faz muita necessidade. Não imaginam o quão doloroso é saber que nunca mais vou ouvir a sua voz.
E volto ao que escrevi no começo. Quando alguém morre, todos o recordam com boas afirmações. Todos. O meu pai não precisa que eu embeleze a sua pessoa, o seu trajecto, a sua qualidade de pai, de marido, de filho, de familiar, de amigo. Neste caso, sei-o com todo o meu ser, perdeu-se uma boa pessoa. Eu perdi um pai que foi para mim, a par da minha mãe, uma pessoa realmente meu amigo. Todos os filhos merecem um pai como o meu. Vejo, todos os dias, na rua ou na televisão ou numa revista ou noutro local qualquer, muita merda que continua neste mundo a viver, a respirar, a fazer nada de útil a terceiros. Eu fiquei sem o meu pai, a minha mãe sem o seu amado e querido esposo. Estou fodido. Estou chateado. Estou amargurado. Espero não ficar assim para sempre. Persistir triste seria ir contra tudo o que me foi ensinado pelo meu pai. Vou recuperar, sei que sim. O meu pai não está ao meu lado, fisicamente, mas está dentro de mim, perto de mim, está naquilo que foi dele. Sei que posso falar com ele. Acredito que sim. Sou céptico em relação a entidades divinas, mas quero acreditar que um homem como o meu pai não pode apenas falecer e deixar de existir. Tem de haver algo mais! Como adorava que existisse um microfone ligado a todo o mundo, para eu poder gritar: TIVE UM PAI ESPECTACULAR!
Até à próxima, irmãs e irmãos Sportinguistas! Nada na vida está garantido, não se esqueçam. Aproveitem todos os momentos ao vosso dispor. A puta da vida, por vezes, não nos deixa em paz e lixa-nos quando menos esperamos, ganha forças e vai-nos ao íntimo, ao coração, e arranca-o cá para fora, e nós sentimos cada instante – e nada podemos fazer para a contrariar. A vida, essa coisa tão abstracta mas tão profunda, traiu-me, mas, por outro lado, deu-me também a conhecer o meu pai. Sejam bons pais para os vossos filhos. Sejam bons filhos para os vossos pais. Amem muito quem o merece. Ignorem quem vos quer mal. Infelizmente, a vida dá-nos a conhecer mais dos segundos do que dos primeiros, mas são estes últimos que interessam, são estes últimos que definem a vida que cada um de nós construirá para si e para quem de si depende. Quem tem amor tem tudo. Quem ama e é amado de volta tem tudo.
O último cartão de aniversário que recebi do meu pai:
Obrigado por tudo, pai, muito obrigado! Se me dissessem para encomendar um pai, certamente que este seria muito inferior ao pai que tu foste para mim.
Do teu filho que te ama mais do que o mundo,
Daniel.